Teatro
Histórias de uma Taberna
(Tó de Porto d’Ave)
Sinopse:
‘Histórias de uma Taberna’ é uma
peça de teatro alicerçada em três contos do mesmo autor: ‘Pica-no-Chão’,
‘Jogadores de Dominó’ e ‘Fonte do Monte’. Entre os vários traços que estas três
histórias comungam, destaca-se uma taberna de uma aldeia rural como palco de
todas elas.
‘Pica-no-Chão’ conta-nos uma partida
que um grupo de amigos fazem a um dos companheiros, o mais ganancioso, que
insiste na ideia de roubarem um galo para fazerem uma comezaina. Acontece que é
ele, longe de imaginar que tal está a acontecer, quem acaba por ficar, não
apenas sem um galo, mas também sem o vinho, salpicão e presunto, isto é, quase
tudo que se come e bebe naquela farra. Esta história desenrola-se nos segundo e
terceiro atos.
‘Jogadores de Dominó’ é sobre dois
anciãos analfabetos, mas sábios graças à escola de uma vida mestra em muitas
matérias, que vão até à taberna jogar uma partida de dominó e beber uma malga
de vinho. Enquanto isso, com mais vinco nos segundo e quarto atos, vão
relatando as agruras, e também algumas alegrias, de uma vida percorrida em
tempos difíceis, iniciada nos primeiros anos do século XX.
‘Fonte do Monte’ é a história que se
estende pela maior área desta peça. Fala de um achado arqueológico, em frente
de uma fonte da aldeia, que corre o risco de ser destruído para a construção de
uma estrada, possibilidade que aquele povo não aceita, pois acreditam que a
água que ela brota é milagrosa e vão relatando algumas graças recebidas que
atribuem ao seu poder.
Desta forma, em ‘Histórias de uma Taberna’, não
encontramos apenas uma história, mas três histórias distintas, interligadas
pelas mesmas personagens, a mesma época e o mesmo espaço.
***
Época: Segunda metade da década de setenta.
Cenário: Taberna de aldeia pequena e rural. Há um calendário
na parede no mês de janeiro de um ano entre 1976 a 1979 e, a cada ato, com
exceção entre os atos II e III, avança uma folha do mês.
Personagens:
Tia Bernarda (50 a 60 anos, taberneira, divertida, sensata,
carinhosa)
Chico Pombo (25 anos, desvairado, usa um velho chapéu de palha. Desloca-se de bicicleta, não
trabalha e nunca tem dinheiro. Gosta de espalhar as novidades e, quando não as
tem, inventa-as só para receber uma malga de vinho em troca.)
Mesa de Sueca:
Tino (30 anos,
ganancioso, queixa-se de tudo)
Zé Bisca (30 anos, reguila e gosta de pregar partidas e
de achincalhar o Tino)
Inácio (30
anos, não é abastado, mas paga de beber ao Tino e ao Chico Pombo)
Manel Manco (35
anos, aleijado numa perna na guerra colonial.
Não é um bêbedo, mas bebe mais vinho do
que os os companheiros)
Mesa de Dominó:
Aristeu (ancião, analfabeto, mas sábio e muito
respeitado na aldeia)
Baltazar (ancião, analfabeto, mas sábio e
muito respeitado na aldeia)
No exterior, podem
estar dois ou mais atores com equipamentos de topografia em cima de tripés, mas
não interagem com o público.
PRIMEIRO ATO
(mês de
fevereiro)
Na taberna estão:
Tia
Bernarda dentro do balcão.
Zé Bisca, Manel Manco, Inácio e o Tino na mesa
de sueca.
Tia Bernarda, (limpando o
balcão): Alguém sabe dizer quem vêm a
ser esses caras-de-cú que volta e meia aparecem por aí?
Tino: Vai-se lá
saber. Eles apontam as geringonças para onde bem lhes apetece e não dão cavaco
a ninguém.
Zé Bisca: Há
umas boas semanas que andam a rondar estas bandas.
Manel Manco: Uns bons meses. Pelos
tordos já eu via por aí aquelas engenhocas em cima de três pernas.
Tia Bernarda: Que raio andarão a
tramar?
Tino: Se fosse coisa
boa, não era para cá que a vinham fazer.
Inácio: Cá para
mim, estes tipos andam a tirar fotografias à caça de Arribas do Monte.
Zé Bisca: Se essa história estiver bem contada, não
tardam ranchos de caçadores por aí e os tordos que não levarem com eles, vão
ficar tão assustados que nunca mais os vemos na mira da espingarda.
Tino: Está visto que mais
ninguém vai comer um arroz de tordos em Arribas do Monte.
Manel
Manco: Olhem
que aqueles apetrechos não tiram fotografias.
Inácio: P’ra que raio serve então aquela geringonçada?
Manel
Manco: Aquilo serve é para ver as estrelas.
Inácio: Estes
tipos necessitam de subir até Arribas do
Monte para verem as estrelas?
Manel Manco: Toda
a gente
sabe que não existe céu mais estrelado do que o da nossa
aldeia.
Tino: Ora
então os homens da cidade querem ver estrelas de dia?
Tia Bernarda: Da
cidade? Quem disse que eles são da cidade?
Tino: Isso
vê-se pelo ar deles. E basta ouvi-los a falar para se perceber que aquela gente
só pode ser de Lisboa.
Tia Bernarda:
Não, aqueles caras-de-cú não têm
fidalguia para serem de Lisboa.
Manel Manco, (concordando
com a Tia Bernarda): Sabem lá em Lisboa que
Arribas do Monte existe.
Cena II
(chega, de bicicleta, o Chico Pombo)
Chico Pombo: Batardes,
povo e pova de Arribas do Monte.
Todos: Boa
tarde Chico.
Manel Manco: Pareces
cansado, rapaz.
Que correria vem a ser essa?
Chico Pombo, (com um
cotovelo apoiado no balcão, virado para os fregueses): Tenho
novidades sobre esses bardamerdas que andam por aí armados em donos disto tudo.
Tia Bernarda: Ora conta lá isso, Chico.
Chico Pombo: Contar
eu até contava, mas tenho a garganta tão seca que nem a voz me sai!
Inácio, (enquanto
naipava as suas cartas): Dê de beber ao Chico e ponha na minha conta, Tia Bernarda.
Chico Pombo: Pode
ser o costume.
Tia Bernarda, (entornando o tinto da caneca numa malga)
Chico Pombo: Cheinha,
Tia Bernarda. Uma tigela é uma tigela. Não é uma tigela menos um bocadinho.
Tia
Bernarda, (entornando mais umas pingas): Que não te dê
cabo da saúde, pobre desgraçado.
Chico Pombo, (depois de chegar com os lábios à malga, sem a levantar do balcão para não
entornar nenhuma pinga, olha à volta e comenta): Vejo
gente já merendada por aqui, mas presigo em bucho alheio, nunca me tirou
fraqueza nem me fez arrotar.
Inácio: Sirva também algum mastigo
ao rapaz, que ele está a botar corpo!
Chico Pombo: Até
que vai, senhor Inácio.
Tia Bernarda, (limpando a faca no mesmo pano com que antes
limpara o balcão, depois de a ter utilizado para cortar uma fatia de broa e
duas rodelas de chouriço): Desembucha lá, Chico. Que
raio de burricada andam esses caras-de-cú a fazer por estas bandas?
Chico Pombo, (ainda a
mastigar): Vão construir uma estrada.
Inácio: Ah, eu sabia. É uma
estrada daquelas que tem duas vias para cada lado. Quando fui à inspeção da
tropa, a camioneta da carreira levou-nos por uma estrada dessas.
Tino:
Eu também lá ia. Aquilo é que era uma grande confusão, só carros e camionetas, uns para
cá e outros para lá.
Manel Manco: Mas qual estrada? O que vai
passar aqui é a linha do comboio para Fafe!
Tia Bernarda: Valha-nos
Santa Engrácia!
Manel Manco, (defendendo a
sua tese): Desde o presidente Carmona
que ela está prometida.
Tino: Qual
comboio, qual quê! Bem sabemos que o que faz falta por aqui, é uma autoestrada
p’rós franceses, em agosto, chegarem cá mais depressa da Suíça.
Tia Bernarda: Oh
valha-nos Santa Engrácia!
Chico Pombo, (com altivez): Se
não acabarem com o basqueiro e deixarem falar quem sabe, ninguém fica a
perceber a ponta dum corno!
(silêncio)
Chico
Pombo:
Fiquem todos a saber que não é uma
estrada dessas como vossemecês se estão a botar p’raí a adivinhar.
Zé Bisca:
Então é uma estrada de que feitio?
Chico Pombo: É só uma estrada
que vai ligar a vila até ao miradouro. E vai passar mesmo
juntinho à Fonte do Monte.
Manel
Manco: Como raio
é que tu ficaste a saber isso tudo?
Chico Pombo:
Porque, em vez de ficar aqui na jogatina e a beber o tintol todo,
eu fui falar com os cabeçudos.
Tia
Bernarda:
Tu foste falar
com eles?
Chico Pombo: Fui,
ora pois.
Tia Bernarda: Que raio te deu na cabeça, Chico?
Chico Pombo:
Avancei até ao sítio onde estavam a montar a ferranchada e dirigi-me a um
cabeça-de-burro com as mãos nos bolsos e a mania que é alguém.
Zé
Bisca: E porque foste falar com esse e não com outro?
Chico Pombo: Pela
aragem do begueiro, via-se logo que era ele quem comandava aquele gado.
Tino:
E que lhe disseste?
Chico Pombo: Como
homem educado que sou, pois nunca, jamais, em dia algum eu faltei ao respeito a
ninguém...
Zé
Bisca, (interrompendo com ironia): Nunca!
Inácio: Jamais!
Manel Manco: Em
dia algum!
Chico Pombo: ...tirei
o chapéu da cabeça e dei boas tardes à manada toda.
Tino: E
depois?
Chico
Pombo: Eles
também me deram boa tarde, ora pois! E atão eu disse-lhes que há muito tempo
que os andava a observar e pedi-lhes o obzéquio de me dizerem o que andam a
fazer nestas terras de Arribas do Monte. Foi quando o cara-de-nabo me perguntou
quem eu era.
Tino:
E tu que lhe respondeste?
Chico Pombo:
Respondi o que tinha que responder, ora pois.
Tia Bernarda: Vá lá, Chico. Entorna essa história de uma vez.
Chico Pombo:
Falei-lhes assim: 'Ora com que então vêm vossemecês a Arribas do Monte e não
sabem quem eu sou?'
Tino:
E eles?
Chico Pombo: Eles
ficaram a olhar para mim com cara de bestas quadradas.
Tino: E tu?
Chico Pombo: Eu
não.
Tino: Tu
não, o quê?
Chico Pombo: Eu
não fiquei com cara de besta quadrada, ora pois!
Tia
Bernarda: Valha-nos Santa Engrácia!
Inácio, (impaciente): Isso
nós sabemos, Chico. Mas que raio se passou a seguir?
Chico Pombo, (com
altivez): Disse-lhes assim: ‘Pois fiquem vossemecês a
saber que eu sou o Chico e, antes de montarem esses apetrechos, era vossa
obrigação pedirem licença aqui ao Chico’.
Zé Bisca: Eles
riram-se muito?
Chico Pombo: Cá
comigo não há risinhos, senhor Zé.
Manel
Manco: Que responderam, então?
Chico Pombo: O
cabeçudo pediu-me desculpa e prometeu remediar a falha.
Tia
Bernarda:
Remediar a falha?
Chico Pombo (com altivez): Falou-me
tal e qual assim: ‘Tenho a informar vossa excelentíssima
senhoria, em primeiríssima mão, que a câmara municipal vai construir uma
estrada que vai passar no meio da sua aldeia'.
Tino: E
depois?
Chico Pombo:
Depois, com olhos de meter respeitinho, que
eles quase até me fizeram a continência, apontei para a Fonte do Monte e
avisei-lhes um aviso.
Zé Bisca:
Avisaste-lhes o quê?
Chico Pombo: Um
aviso, ora pois. Avisei-os que podiam construir a estrada, mas ai deles se
fazem mal à Fonte do Monte!'
Tino: E
eles?
Chico Pombo, (com
altivez): Eles não, porque o assunto
era só entre mim e o chefe. Os outros borra-botas nem piavam.
Manel Manco, (impaciente):
E que te respondeu esse
chefe, homem do diabo?
Chico Pombo:
Respondeu assim: 'Certamente que
ninguém fará mal à fonte, senhor Chico'. E depois disse uma coisa que não me
caiu lá muito bem.
Todos,
(em silêncio à espera que o Chico completasse)
Chico Pombo, (fingindo-se
nervoso): O filho-da-puta disse que a Fonte do Monte mais lhe parecia uma pia para os
animais beberem!
Todos: Ai o
filho-da-puta!
Manel Manco: E tu
ficaste-te?
Chico Pombo: Mandei-o logo p’rá puta que o pariu, ora pois.
Tia
Bernarda: Isso
vai-te trazer problemas, Chico. Não tarda e vem a Guarda fazer-te umas
perguntas, pobre coitado.
Chico Pombo, (mais calmo): Acho que ele não ouviu quando o mandei
para essa banda.
Zé
Bisca: Calaste-te,
seu cobardolas!
Chico
Pombo: Cobardolas?
Eu não sou cobardolas, senhor Zé. Calar-me, eu, perante um insulto à Fonte do
Monte?
Zé Bisca: Afinal,
mandaste-o, ou não mandaste para aquela banda?
Chico Pombo: Fiquei
com tantos nervos que até a língua me ficou presa, senhor Zé! Mas mandei-o com
todo meu coração!
Tia
Bernarda: Pede a Deus que a língua te fique sempre presa
nessas horas, pobre diabo!
Manel Manco: E
quando a língua se soltou?
Chico Pombo: Aí
engrossei a voz, ora pois.
Zé Bisca: E que
lhe disseste com voz grossa?
Chico Pombo: Voltei a apontar-lhe o dedo, para ele ver bem
quem é que manda em Arribas do Monte, e, olhos nos olhos, atirei: 'Mas qual
pia, qual quê? Veja lá se tem mais respeitinho ou não há estrada p’ra ninguém.' Atão o cara-de-nabo pediu desculpa
pelas almas e perguntou-me o que tem a Fonte do Monte de tão especial.
Tino: E tu?
Chico Pombo: Disse-lhe
que é a água que ela brota que cura as doenças todas desta aldeia, ora pois.
Inácio: E o
homem?
Chico Pombo (corrigindo o
Tino): O begueiro!
Inácio: Pois
que seja.
Chico Pombo: O
begueiro apontou para o cemitério e mugiu: 'Àqueles não serviu de muito!' Atão
eu disse-lhe que, aos que estavam dentro daqueles muros, se tivessem bebido
mais na Fonte do Monte e menos nesta taberna, ainda tinham muita água para
beber.
***
SEGUNDO ATO
Cena I
Um mês depois: (março)
Na taberna estão a Tia Bernarda dentro do
balcão.
o Zé Bisca e o Manel Manco a jogarem bisca do
nove.
Entram o Tino e o Inácio, vestidos de
pescadores, com as canas e a cesta da pesca:
Tino e Inácio: Boa tarde, povo de Arribas do Monte.
Todos: Boa tarde.
Tia
Bernarda: Boa tarde meus amores. Ora digam lá o que
vos vou servir?
Inácio: Para mim vai uma tigelinha, Tia Bernarda.
Tia Bernarda: Outra para ti, Tino?
Inácio: Fica descansado que esta é por minha conta!
Tino: Já que o amigo convida, até era uma desfeita
que lhe fazia se não aceitasse!
Zé Bisca, (com ar de troça a espreitar a
cesta de pesca vazia): Com que então, foram dar banho à minhoca!
Tino, (a resmungar): Para comer trutas de escabeche, só nos faltam
as trutas.
Inácio: É que nem uma com disposição de saltar para a
sertã.
Manel Manco: Mas a tarde ainda é uma criança. Não era cedo
para desistirem?
Inácio: Era hora de nos pormos na alheta. Ainda
por cima com a chuva à espreita.
Tia
Bernarda: Bendita chuva, que também faz muita falta.
Tino: Mas não é nas minhas costas!
Manel Manco: Mas para assentar a poeira que aí anda, até
vem a calhar.
Inácio: Desde que começaram a construir a estrada, se
não é poeira, é lameiro.
Tino: Se mal de costas, pior de barriga.
Zé Bisca: Mas que raio de pescadores são estes que não
têm vergonha de chegar aqui com a cesta cheia de ar?
Inácio: Estava visto que não ia picar nada.
Zé Bisca: Por falar em picar, sabem para o que o dia está
bom?
Tino, (a resmungar): Não me parece que esteja bom para nada.
Zé Bisca: Está
bom para comermos aqui um pica-no-chão.
Inácio: Não está nada mal pensado.
Tino: Também alinho. Até deixei recado que não ceava
em casa, pois já contava que me convidasses para a tua mesa.
Manel Manco: Isso é que é ter fé. E aqui o Zé também está
sempre pronto para a comezaina, ou não é, companheiro?
Inácio: Ainda por cima foi ele quem lançou o engodo.
Zé Bisca: É o que
se leva desta vida.
Inácio: Sendo assim vamos comprar um galo e, enquanto
batemos meia dúzia de negras de sueca, a tia Bernarda faz-nos um arroz de
cabidela à maneira.
Tino, (em surdina, dirigindo-se aos três companheiros): Até já me está a crescer água na boca. Mas
comprar um galo?
Manel Manco: Sim, ou
queres comer só arroz?
Tino, (ainda mais em surdina): Qual comprar, qual quê? Um arroz pica-no-chão,
numa farra de amigos, para ficar como manda a lei, o galo tem de ser roubado!
(Todos,
com ar de interrogação e espanto)
Manel Manco: Homessa agora!
Nunca conheci lei que mandasse roubar o que quer que seja!
Inácio: Se eu tivesse algum na altura de o comer, ainda
vá que o oferecesse. Mas não nos deu, Deus Nosso Senhor, saudinha da boa a
todos para amanharmos com que o pagar?
Tino, (continuando em surdina): A questão não é pagar ou deixar de pagar. E
para oferecer o galo estava cá eu, que até tenho um pronto a voar para o pote
há um ror de meses.
Zé Bisca: Mais depressa esse galo punha um ovo do que tu
o oferecias.
Tino: A minha mulher até agradecia. Ela passa a vida a reclamar
que ele come uma rasa de milho por semana.
Manel Manco: Então vai lá buscar o bicho.
Tino: De boa vontade o faria. (novamente em
surdina) Mas a tradição é comprar o galo sem falar com o dono. Digo-vos
eu que não há melhor tempero!
Zé Bisca, (dirigindo uma piscadela ao
Inácio): Se o Tino
diz que é tradição.
Tino, (satisfeito por convencer o Zé Bisca): E tradições são para se cumprir.
Zé Bisca, (com arterice): Afinal, quem é que se vai importar se amanhã
tiver um bico a menos no comedouro? Só falta saber em que capoeira mora um galo
digno da nossa mesa.
Inácio, (ainda a tentar que o plano de
roubar um galo não vá avante): Para quatro bocas não é necessário um bicho de grande
figura.
Tino: Mas antes sobeje que rareje. E quem tem uns capões tão
grandes como perus, é a minha vizinha s’Laurinda Vesga.
Inácio: Tem, mas são dela. E é ela quem lhes dá de
comer!
Tino: O raio da velha não tem fome para aquilo tudo.
E a sina deles é morrer na cozinha e não de velhice.
Inácio: E quem é que vai lá deitar-lhe as unhas?
Manel Manco, (esquivando-se): Aqui o manco não pode ir, pois a velha é vesga, mas não é
cega nem surda. Ainda por cima é das bravas e eu não tenho pernas como as
vossas para lhe fugir.
Tino: E a mim até o cachorro me denunciava, pois, bem mais educado
do que a dona, cumprimenta-me todos os dias.
Inácio, (precavido): Ainda por cima tem cão?
Tino: Aquela bola de pêlo ladra, mas até de gatos foge, quanto
mais dum tipo mal vestido de cara como tu.
Inácio: Falou uma cara linda como a parte de trás duma
junta de bois galegos!
Zé Bisca: E a s’Laurinda não dá conta de nós?
Tino: A esta hora já o raio da beata está a contar o terço junto
do altar da Senhora da Graça, à espera da missa vespertina.
Zé Bisca: E o resto da vizinhança?
Tino: A vizinhança sou só eu e os meus. E ao sábado
de tarde, a minha Amélia e os rapazes entretêm-se na catequese. A esta hora vão encontrar aquele lugar na paz das almas.
Inácio: E onde escondemos o galo?
Zé Bisca, (pegando na cesta da pesca): O galo vem aqui dentro!
Tino (entregando-lhe a cana da pesca): Aproveitai para deixares esta cana na minha
arrecadação, que tem a cancela batida só no trinque.
Zé Bisca: Bora lá, Inácio. Já que não pescaste nenhuma
truta com escamas, vais pescar uma com penas!
Cena II
(ouve-se
a motorizada deles a arrancar e entram
o Aristeu e o Baltazar)
Aristeu e Baltazar,
(tirando a boina preta da cabeça):
Boa tarde
rapazes. Boa tarde, dona Bernarda.
Todos: Muito boa tarde.
Manel Manco: Hoje é dia duma partidinha de dominó?
Baltazar: Com um quartilho a acompanhar.
Tia Bernarda, (servindo apenas uma malga que
os dois partilhavam): Ora aqui vai uma pinga para os meus clientes mais antigos.
Aristeu: É verdade. Ainda a Tia Bernarda não tinha
nascido já o seu pai nos enchia esta malga.
Baltazar: Isso dá que pensar, compadre. Mas nesse tempo
era uma vez por festa.
Aristeu, (dirigindo-se ao Manel e ao Tino):
Se era. Quando
tínhamos a idade destes rapazes, a vida não era como agora.
Baltazar: Comemos o pão que o diabo amassou!
Aristeu, (a apontar para o rádio): Nem sequer havia um rádio como aquele nesta
aldeia.
Baltazar: Luz era a da candeia.
Aristeu: Carros, só puxados por bois ou burros.
Baltazar: Quem tivesse um cavalo já era um senhor.
Aristeu: Recordo-me bem da primeira vez que vi um carro
a motor. Estava eu no Castro a apanhar as azeitonas do chão, enquanto as cabras
da s’Mélia Rasgamanta pastavam
numa bouça ao lado. Ó rapazes, nem queiram saber o susto que apanhei.
Manel Manco: E o carro apareceu de onde?
Aristeu: Veio por esses caminhos de carros de bois. Não
havia estradas como essa que andam aí a construir.
Tino: E quem vinha lá dentro?
Aristeu: Soube-se depois que era o doutor Viriato, que
veio ver o pai do regedor Severino, que sofria dum mal ruim.
Manel Manco: O médico nunca tinha vindo cá?
Baltazar: Antes vinha montado numa mula. Pobre coitada,
também passou das dela.
Aristeu: Naquela tarde, quando comecei a ouvir
pó-pó-ró-pó-pó-ró-pó-pó-ró, veio o rebanho todo tolhido a berrar e a correr, de
maneira que até o chão do olival ficou cheio de caganitas.
Manel Manco, (a brincar): É certo que muitas lá acabaram por ir
no meio das azeitonas!
Aristeu: Uma ou outra não garanto que não tivesse ido
parar ao lagar!
Manel Manco: Está explicado o segredo do seu azeite ter tão
pouca acidez! Mas conte-nos lá o resto dessa história.
Aristeu: Aqui vai, rapazes.
Quando decidi espreitar e vejo aquele chucha-pitos maior do que uma charrete,
todo preto e a reluzir, com os olhos acesos a vir na minha direção, sem boi,
nem mula, nem cavalo a puxá-lo, pois vos digo que não fiquei menos tolhido do
que as cabras da s’Mélia.
Manel Manco, (provocador): Só que em vez de
caganitas…!
Aristeu: Pouco faltou, quando aquilo deu uma
buzinadela que me pôs em sentido. E depois de o ver a passar na minha frente e
também não ia nenhum animal a empurrá-lo, ai pernas p’ra que te quero!
Baltazar: Foi mais ou menos como
eu fiquei quando vi o primeiro avião.
Manel Manco: Pois, isso veio ainda mais tarde.
Baltazar: Era eu pinche do Zeca Gago e estávamos a pregar as ripes de
eucalipto que iam receber as telhas na casa do Juca Nabiço. O primeiro a
vê-lo até foi ele e apontou para o céu a perguntar: “Ó-ó Ba-bal-ta-ta-zar,
ma-ma-mas que-que rai-rai-o-o de-de pá-pá-ssa-ro-ro é-é a-a-que-que-le, que-que
dei-ta-ta fu-fu-fu-mo pê-pê-lo-lo cu?”
Aristeu: Agora não há novidades
como nesse tempo. Antes dalguma coisa aparecer na nossa frente, já aquela
televisão a mostrou e nós não apanhamos sustos nem surpresas como se
estivéssemos perante uma coisa do outro mundo.
Baltazar: A televisão veio
estragar tudo.
Aristeu: E que mais irá
estragar. O compadre já viu a pouca-vergonha nesse filme brasileiro que dá
todas as noites?
Baltazar: A Gabriela, compadre?
Aristeu: Sim, essa do Bataclã!
Baltazar: Vejo eu e vê toda a
aldeia.
Manel Manco: Mas aquilo até alegra a
vista à gente, ora digam lá que não é verdade?
Aristeu: Lá isso alegra. Mas
tenho receio que aquele boa-vai-ela pegue moda por cá.
Cena III
(ouve-se a motorizada a parar, entra
o Zé Bisca com o galo dentro da cesta da pesca e o Inácio com um garrafão de
vinho em cada mão)
Zé Bisca e Inácio, (dirigindo-se aos dois
velhotes): Boa tarde senhores.
Inácio: Gostamos de os ver por cá.
Baltazar
e Aristeu: Boa tarde rapazes. São servidos desta
malguinha?
Inácio, (mostrando-lhes os garrafões): Muito obrigado. Mas hoje trouxemos que chegue
para todos.
Baltazar: Estou a ver que sim. E o que quer dizer esse
galarote?
Zé Bisca, (improvisando): Ganhámo-lo no torneio da malha de Vârzeas.
(a
partir daqui o Baltazar e o Aristeu ficam a jogar dominó e a conversa passa a
ser entre os restantes).
Inácio, (mostrando-o aos outros): Aqui está o nosso manjar!
Tino, (a olhar para o
galo): Arre pinta! Melhor que isto só na minha capoeira.
Zé Bisca: Terás mesmo algum figurão desta categoria na
tua capoeira, Tino?
Tino: Oh, se tenho. Se o vissem iam ficar baradinhos.
Zé Bisca, (entregando o galo à taberneira): Dá para preparar este galo para a ceia, Tia
Bernarda?
Tia Bernarda: Valha-nos
Santa Engrácia!
Zé Bisca: Vá lá, Tia Bernarda.
Tia Bernarda: Ó meus amores, isto que me trazeis não é uma
rola. Entre meter-lhe a faca, depená-lo e pô-lo como manda a sapatilha, bem
podeis ir à vossa vida sem contares com a patuscada antes das nove.
Zé Bisca: Que remédio
temos nós em esperar.
Tia Bernarda: Mas se a fominha apertar, eu adianto-vos algum
mastigo para irem prendando a barriga.
Inácio: Pois então fazemos aqui mesmo a espera, que lá
fora está um frio de rachar!
Tia Bernarda: Mas para a próxima avisai com tempo ou
ficais-vos por um caldo de nabiças.
Zé Bisca: Vinho também trouxemos, Tia Bernarda. Só
precisamos das malgas. Mas anote tudo na conta.
Tia Bernarda, (indo para a cozinha): Pegai nelas do balcão, meus marotos, para eu
não me atrasar.
Tino, (dirigindo-se à casa de banho): Eu vou mudar a água às azeitonas.
Zé Bisca, (em surdina para o Manel Manco):
O sovina acha que o
arroz pica-no-chão fica melhor com um galo roubado, vamos ver se lhe vai saber
bem um da capoeira dele!
Manel Manco,
(surpreendido): Vós fostes capazes duma tratantada dessas?
Zé Bisca: Nem sei como o somítico não o reconheceu.
Porque acho que o galo o reconheceu a ele!
Inácio: E os garrafões também vieram da arrecadação
dele!
Manel Manco, (fazendo um gesto com o dedo
indicador em movimento): Melhor, nem de encomenda. Mas como raio tivestes coragem para tamanha
safadeza.
Zé Bisca: Para o Galo eu já ia com ela fisgada, e foi o
Inácio quem lhe foi agarrar as asas enquanto eu fui arrumar a cana de pesca na
arrecadação dele. E foi lá que vi quatro garrafões a rirem-se para mim! Ainda
tentei resistir ao diabo, mas estes dois saltaram para as minhas mãos. Lá teve
que ser!
Inácio: E nem fomos muito maus, pois ficaram lá outros
tantos!
Manel Manco: Até tenho medo que lhe dê o badagaio quando
descobrir a tramoia. Mas, para quatro homens, um garrafão não era suficiente?
Zé Bisca, (provocador): Um garrafão era suficiente, se um desses quatro homens não
fosses tu, Manel!
(o
Tino regressa à mesa e os companheiros tentam não dizer nada que o faça
suspeitar. O Zé Bisca agarra as malgas e o Inácio pega numa caneca e enche-a
com o tinto de um dos garrafões e, com ela, enche as malgas.)
Zé Bisca: O vinho trouxe-o da minha adega, mas vós ides
ajudar a pagá-lo.
(o
Manel esconde o riso com a malga e acena com a cabeça a concordar)
Tino: Ouve lá, ó Zequinha. Onde já se viu
chorar o vinho que se reparte com os amigos?
Manel Manco: Olha que a vida custa a
todos, ó Tininho. E o Zé não casou com a herdeira de nenhuma fortuna.
Tino: Está bem, está bem. Mas umas vezes
toca a uns, outras toca a outros. Desta vez tocou-lhe a ele, para a próxima
toca-te a ti ou ao Manel.
Inácio: E a ti vai tocar no dia
de São Nunca!
Zé Bisca: Ninguém se chateie por coisa tão pouca. Eu
ofereço o raio do vinho.
Tino: Boas palavras.
Inácio, (preparando-se para encher a malga
dos jogadores de dominó): Provem
esta pomada, meus senhores. Até vão ficar mais novos.
Baltazar: Obrigado, rapazes.
Aristeu: Obrigado, Deus vos dê saúde.
Manel Manco: Bora lá fazer um brinde:
Todos, (com as malgas erguidas): Que as nossas mulheres nunca fiquem viúvas!
Tia Bernarda, (dentro da cozinha): Sempre a mesma treta!
Todos, (com as malgas erguidas): À sua saúde, Tia Bernarda!
Tia Bernarda, (dentro da cozinha): Obrigado meus amores.
Inácio, (falando para os companheiros): Fiquei com as orelhas a arder quando parei em
casa para arrumar a cana de pesca e dar o recado à minha Micas que ceava por
minha conta!
Zé Bisca: Pôs a vizinhança toda à janela com a gritaria
(imitando a voz da mulher do Inácio) “Tu vê bem em que companhias
te metes, desgraçado. E ai de ti se me apareces a más horas e com cheiro a
vinho!”
Inácio: Ela tem as suas razões. Na última vez que fui
para casa depois duma patuscada destas, nem a chave consegui enfiar na
fechadura. Aquela cara linda abriu-me a porta e deu-me as boas-vindas.
(imitando a voz da mulher) ‘olha que lindo! estás mesmo muito lindo!
olha só que linda figura!’
Zé Bisca: Estavas mesmo. Ias lindo como um andor!
Inácio: Ainda tentei explicar-lhe que me caíram mal
umas azeitonas, mas não deu bom resultado. (imitando a voz da mulher) ‘Foram
as azeitonas, foram, seu desavergonhado. O que tu merecias era ficares a dormir
ao relento até curares a bebedeira.’
Zé Bisca: Vai contando que é o que te vai acontecer
hoje!
Tino: E cada um só tem o que merece!
Zé Bisca: Concordo com o Tino. Cada um só tem o que
merece, não é, companheiros?
(riem,
e o Tino também ri sem perceber a piada)
Tia Bernarda, (colocando uma toalha de
taberna, aos quadrados): Erguei essas malgas para colocar esta toalhinha, meus amores. (de
seguida coloca um lote de pratos e talheres, sem os distribuir
pela mesa, um salpicão e um quarto de broa em cima dela, e ordena) Quem
não trabuca, não manduca! Trabalhai vós que eu tenho muito com que me ocupar na
cozinha.
(o
Inácio começa a cortar o salpicão e já o Tino tem a mão pronta para agarrar a
primeira rodela)
Tino, (ainda a mastigar): Não tem mau comer, mas tenho muito melhor lá
em casa.
Inácio: Gaba-te cesta, fanfarrão.
Tino: Fanfarrão? Já nem vou falar do presunto que encetei no
domingo passado. Aquilo é um primor, pois ninguém por estas bandas sabe fazer a
cura como o meu sogro, receita que aprendeu com um freguês de Montalegre.
Inácio: Bem que o podias ir buscar para desougares os
amigos!
Tino: A minha casa fica longe. Mas a do Zé é a meia dúzia de
passos daqui e ele cria sempre um ou dois porcos. Deve ter um fumeiro farto.
Manel Manco: O Zé já deu o vinho.
Tino: E vai-lhe cair a pila se repartir vinho, salpicão e presunto
com os amigos?
Inácio: Já tu, para ofereceres um garrafão, terias
que receber uma pipa na troca!
Cena IV
(o
Zé Bisca avista o Chico Pombo a chegar de bicicleta e logo um plano se engendra
na cabeça dele)
Zé Bisca: Já vi que hoje toca-me tudo a mim! Vou pedir
ao Chico para ir a minha casa e traga de volta um salpicão e quatro tiras de
presunto. Mas fique assente que, na próxima vez, tem de calhar a outro.
Tino: Um salpicão para quatro homens não tapa a cova dum dente,
seu mísero. E o s’Aristeu e o s’Baltazar também aceitam uma buchinha. Diz ao
Chico que traga pelo menos dois salpicões e um bom naco de presunto.
Inácio: Quando são os outros a abichar, és mãos largas
p’ra caralho!
Zé Bisca: Bem, perdido por cem, perdido por mil. (levanta-se,
vai ter com o Chico antes que ele entre na taberna e segreda-lhe)
Voltas a montar na tua bicicleta e vais a casa do Tino, que mora ao lado da
s’Laurinda Vesga, entendeste?
(o
Chico acena com a cabeça, confirmando que conhece o lugar)
Zé Bisca: Bates à porta e dizes assim à mulher dele: ‘ó
Amelinha, o senhor Tino mandou-me cá para vossemecê me entregar os dois
salpicões mais gordos do fumeiro e um bom naco do presunto que ele encetou no
domingo passado’. Quando tiveres a encomenda na mão, regressas e merendas e
jantas connosco.
Chico Pombo: Não era melhor eu beber uma malguinha antes de
dar ao pedal, senhor Zé?
Zé Bisca: Primeiro faz bem este recado e quando vieres,
comes e bebes à patrão. Mas ouve com muita atenção: Se algum dos meus
companheiros te perguntar onde foste, dizes que foste a minha casa, entendeste?
Chico Pombo: Entendi tudinho, senhor Zé.
Cena V
(após
o recado, o Chico dá ao pedal e o Zé Bisca volta para a mesa)
Baltazar: Aproveitai, rapazes. No tempo em
que nós tínhamos a vossa idade, a única coisa em que havia fartura, era na
fome.
Aristeu: Nem em boda de casamento havia um regabofe
como esse que vos estais pra’í a preparar para enfardar!
Baltazar: Mas não é só a fome que mata. Fartura a mais
também vos dá cabo da saúde.
Manel
Manco: Uma vez não é vez, s’Baltazar. E sempre
ouvi dizer que, quem não é p’ra comer, também não é p’ra trabalhar!
Aristeu: Muito trabalhei eu em jejum, Manel. Havia fome
que até doía e o trabalho era de sol a sol.
Baltazar: Quando não havia serão! Até dói lembrar. Com a idade dos meus netos, em vez dum lápis e uma sebenta,
o meu pobre pai deu-me uma maceta e um ponteiro e em vez duma sacola, as minhas
costas carregavam calhaus mais pesados do que eu.
Aristeu: A escola era fortuna para poucos.
Inácio: O s’Baltazar não sabe ler nem escrever?
Baltazar: Da minha idade, Inácio, são poucos os que
sabem. Mesmo assim, de contas de cabeça, que ninguém me peça meças, a
não ser que queira passar vergonha perante um simples pedreiro.
Aristeu, (a apontar para o jornal): Tal como eu. Não saber ler aquele jornal, é um
grande desgosto que carrego.
Inácio: O s’Aristeu também não sabe ler?
Aristeu: Mas se um freguês me compra uma canada de
azeite, pode pagar com moedas pretas e brancas, ou com notas do Santo António
ou da rainha Santa Isabel, pois eu sei bem quantas são necessárias de cada para
fazer cem mérreis, e também sei que são dez notas de cem que fazem um conto de
reis.
Baltazar: A nossa escola foi dura, foi a vida.
Aristeu: Oh, se foi dura. Era eu um pirralho quando a
minha pobre mãe me trouxe ao lagar a pedir que me dessem um colchão e um prato
de sopa a troco do meu trabalho. Foi num inverno desgraçado e eu, descalço e
cheio de fome, a apanhar azeitonas do chão e a carregar as cestas até ao carro
de bois.
Baltazar: Foste ainda mais rijo do que os invernos e do
que o peso das cestas que tiveste que alombar.
Aristeu: Vida desgraçada. Cresci a acordar antes
do sol nascer e a amargar muitos serões na apanha, no transporte e na
espremedura da azeitona.
Inácio: E esses trabalhos não são nada meigos.
Aristeu: E naquele tempo nem se fala! Nem
eletricidade havia, quase todas as tarefas exigiam sacrifícios e os mais
penosos eram atribuídos aos mais fracos.
Tia Bernarda: Sempre foi assim e sempre assim será.
Inácio:
E como é que o s’Aristeu, tão pequeno, aguentou isso tudo?
Aristeu: A gente, quando não tem outro remédio, tem que
se sujeitar. Mas há coisas de que tenho saudades.
Baltazar: Também eu, compadre. Havia fome, mas também
havia muita alegria.
Aristeu, (dirigindo-se ao Baltazar): O compadre lembra-se daqueles serões na altura
da espremedura da azeitona, onde assávamos batatas que levavam um murro antes
de as regarmos no azeite acabado de sair do bagaço?
Baltazar: E quando havia uma racha de bacalhau, uma broa
de milho, uma molha grelos e dois dentes d’alho para juntar às batatas.
Aristeu: Aquelas migas sabiam-me pela vida. Mas para a
farra ser completa, era quando tu levavas a concertina e o Neca Mirolho
levava o cavaquinho.
Baltazar: Sem poder faltar um garrafão de tinto! A malta
cantava e ria até o sol nascer. Até o Zeca Gago entrava na cantoria.
Aristeu: Ele a cantar não gaguejava!
Baltazar: Nem a cantar, nem a beber! Passámos lá umas
boas madrugadas. Se começarmos a contar as histórias todas, temos conversa até
vir o homem-da-fava-rica!
Aristeu: Eram tempos muito duros, mas a malta, quando
se divertia, divertia-se à brava. Mas também eu carrego uma grande tristeza por
essa escola da vida não me ter ensinado a escrever ou ler uma carta.
Manel Manco: Sem saberem ler, não deve ter sido fácil
construir tudo que os senhores construíram.
Baltazar: Mesmo sem a escola dos livros e dos
professores, também eu aprendi a fazer cálculos que não me apequenam diante de
muitos doutores. (virando-se para o Aristeu) Recorda-se da
construção da capela de São Francisco, compadre?
Aristeu: Então não havia de recordar? Já lá vai muito
tempo. O regedor ainda era o Severino da Ponte e o padre era o velhinho
Martinho Luz, com quem tínhamos feito a comunhão solene.
Baltazar: Ai esse dia. Foi quando calcei umas botas pela
primeira vez, feitas pelo Adelino Sapateiro
onde o meu pai, uns dias antes, me tinha levado para ele tirar as medidas.
Aristeu: Pois nesse dia os meus pés estavam como vieram
ao mundo. Ainda tive que apanhar muita azeitona do chão até merecer umas
chancas.
Baltazar: Graças a Deus que esses tempos já lá vão.
Aristeu: Tal como já foram o padre Martinho Luz e o
regedor Severino, mais conhecido por Severino Severo.
Baltazar: Dois homens de boa memória, do tempo em que o
respeito reinava.
Aristeu: Não era respeito, compadre. Era medo!
Baltazar: O compadre é capaz de ter razão. Mas
recorda-se de quem construiu a capela?
Aristeu: Claro que foi vossemecê, compadre. A quem mais
ia ser entregue uma obra que obrigasse a tanto esmero?
Baltazar: E não foi só esmero. Com receio de gastar o
dinheiro das esmolas à toa, calculei aquilo tão bem que o perpianho foi quase
resvés. Depois da capela estar em pé, sobraram só meia dúzia de patelas que
serviram para fazer os dois bancos que estão no adro.
Manel Manco: Está ali realmente uma obra e pêras!
Baltazar: E não foi só o
perpianho que eu soube calcular a quantidade necessária. De telhas ainda
sobraram menos, tal como os azulejos do interior. Tudo contas feitas nesta
cabeça, quando ela ainda tinha muito cabelo!
Aristeu: E gastou-se lá muita pedra. Lembro-me de a ver
a passar nos carros de bois que chiavam desde a pedreira do Sanfão por aí
acima.
Baltazar: Foram duas juntas de galegos valentes que a
trouxeram toda. Um desses animais tinha ganho o primeiro prémio na Feira dos
Vinte-e-Cinco. Muito trabalharam eles. Por fim, podiam ir e vir sozinhos, pois
já conheciam o caminho de cor.
Aristeu: Pudera! Eles marcaram-no de bosta de uma ponta à outra!
Cena VI
(ouve-se a campainha da bicicleta do
Chico, ele entra ofegante)
Chico Pombo, (entregando a encomenda
embrulhada num pano ao Zé Bisca): Batardes, povo e pova de Arribas do Monte.
Todos: Boa tarde, Chico.
Zé Bisca, (fazendo-lhe um gesto com o dedo
em frente aos lábios para que ele não denuncie de onde vem): Pega numa malga do balcão e senta-te aqui,
rapaz. Uma boca a mais não apouca o que houver.
Tino, (reparando
no pano onde o presunto vinha embrulhado): A minha Amélia comprou uma dúzia de panos iguais a esse a um charlatão na romaria!
Zé Bisca, (atrapalhado, a disfarçar): Foi tal como a minha mulher. Lá estava o
liaguarudo com o microfone ao pescoço: ‘não leva um, não leva dois, não leva
cinco, não leva dez. Por uma nota de cem, leva uma dúzia destes panos’...!
Tino, (estranhando): A minha Amélia teve mais sorte, que os comprou
por cinquenta escudos!
Zé Bisca, (atrapalhado): A minha mulher tem a mania de comprar sempre
duas remessas!
(entretanto,
o Chico tirou meia dúzia de nozes do bolso e começou a partir uma)
Tino (desconfiado): Onde arranjaste as nozes, seu caralho?
Chico Pombo, (recordando que não pode dizer
que foi à casa do Tino): Foi a esposa do senhor Zé que mas deu, ora pois!
Tino: Ia jurar que são das minhas! Ainda por cima o
Zé não tem nenhuma nogueira, como raio tem a mulher dele nozes em casa!
Manel Manco: A pensar assim, só o sapateiro é que tinha sapatos!
Zé Bisca, (ainda com medo de que o caldo se
entornasse, enquanto cortava o presunto): O primeiro a ser servido é o Chico, que, enquanto o diabo
esfrega um olho, foi a minha casa buscar esta iguaria.
Tino: Enquanto o diabo esfrega um olho? Quase tinha tempo de ir lá
cima à minha casa e vir!
Zé
Bisca,
(empiscando ao Inácio e ao Manel, que já estavam a perceber a marosca): O Chico não é o Joaquim Agostinho!
Tino, (agarrando a primeira tira): Que é jeitoso, ninguém o pode negar. Mas não
se compara ao que encetei há dias.
Zé Bisca: Prova também o salpicão e diz se tens melhor.
Ou também tens receita de Montalegre para salpicão?
Tino, (agarrando uma rodela de salpicão): Também este não tem mau comer. Mas tem muito
que andar até chegar aos calcanhares dos meus.
Manel Manco: Nunca tem mau comer quando é do fumeiro dos
outros que cai.
Inácio, (colocando um prato, com duas tiras
de cada, na mesa de dominó): Meus senhores, hoje chega para todos.
Aristeu: Obrigado, rapazes. Mas o ácido úrico
arrelia-se se não resistir a estas tentações.
Baltazar: Esta vida anda toda ao contrário. Antigamente
tínhamos saúde e não tínhamos presunto. Agora temos presunto e a saúde não nos
o deixa comer.
Zé Bisca, (provocador): Confessem lá, avozinhos. Presunto não é a única coisa que já
não podem comer como antigamente!
Aristeu: P’ra lá ides.
Aproveitem bem enquanto a vinha dá uvas!
Inácio: Mas comam ao menos uma tira deste petisco. Com um naco de broa até engana o ácido úrico.
Manel Manco: E uma vez não é vez.
Aristeu, (pegando numa rodela de salpicão): Vai ter que ser, compadre. Não podemos fazer a desfeita aos
rapazes.
Baltazar: Que Deus nos perdoe este pecado.
Inácio, (agarrando a caneca do vinho, diz
aos anciãos): Deixem-me
encher essa malga que isso tem que ser bem regado! (enquanto enche as
malgas dos companheiros de mesa) Que tal é o vinho, Tino?
Tino: Não escorrega mal. Mas tenho uma pomada nuns garrafões na
minha arrecadação, que mete esta bacatela na algibeira.
Zé Bisca: Bebe com tino, Tino, senão perdes o tino!
Inácio, (servindo presunto ao Chico Pombo): Não faças cerimónias,
Chico. Enquanto
está por comer, chega para todos. Aproveita para tirar a barriga de misérias.
Chico Pombo: Obrigado, senhor Inácio. Deus lhe pague, já que
eu não posso!
Baltazar: Rapaziada,
eu e o meu compadre vamos ter de fugir destas tentações!
Inácio: Mas vossemecês não querem cear com a gente.
Zé Bisca: O galo estica para todos!
Baltazar: Obrigado, rapazes, mas isso ia dar a deshoras e
nós não podemos ir para o ninho com a pança cheia. A minha ceia é só um
caldinho de cebola a aconchegar o estômago.
Aristeu: Tenham um bom
repasto, rapazes. Que Deus abençoe a vossa ceia.
Baltazar: Até amanhã se Deus quiser.
Todos: Até amanhã se Deus quiser.
(chega
a taberneira com uma terrina de barro a fumegar e coloca-a na mesa)
Tia Bernarda: Que vos saiba bem, meus amores. E acabei de
meter outro tanto arroz no pote para vir fresquinho quando esta terrina ficar
lambida.
Todos: Obrigado Tia Bernarda.
(desligam-se as luzes do palco)
Cena VII
(acende-se
a luz, o relógio avançou uma hora e já estão todos bem jantados)
Tia Bernarda,
(arrumando a louça da mesa): Estava boa a paparoca, meus amores?
Inácio: Isto é que foi um fartote, Tia Bernarda.
Manel Manco: Um manjar destes, só mesmo saído da sua
cozinha.
Zé Bisca: Mas a receita do Tino também ajudou.
Tia Bernarda: Receita do Tino!?
Zé Bisca: Coisas cá nossas, Tia Bernarda. (dirigindo-se
ao Tino) Que tal estava, Tino? Ainda por cima açambarcaste logo a
melhor ração.
Tino: Quem parte e reparte e
não fica com a melhor parte, ou é tolo ou não tem arte.
Inácio: Arte? Uma falta de educação, é o que é.
O mais
velho é o Manel, devia ter sido ele o primeiro a ser servido.
Manel Manco (acusando o Tino): Tens mais olhos que barriga, seu lambão.
Tino: A ração não é para quem se talha, é
para quem a come. E aviso-vos que a inveja é um dos sete pecados capitais.
Manel Manco: Ai tu conheces os pecados capitais? Pois devias
estar mais preocupado com a gula e a avareza! Também esses guiam muitas almas
ao inferno.
Tino, (dando um arroto): O que tu querias era
arrotar a coxa de galo.
Manel Manco: Podes arrotar mesmo tu. Afinal, arrotos é das
poucas coisas que dás. E, porque ainda estamos à mesa, nem vou dizer qual é a
outra!
Inácio: E só os dá, porque
ninguém lhos compra.
Zé Bisca, (em tom de troça): O Tino também deu a receita especial deste manjar.
Manel Manco: Honra lhe seja feita!
Inácio: Que tal, Chico?
Zé Bisca: De tempero estava tal e qual como o
Tino ensinou a fazer.
Chico Pombo: Estava bô, bô, bô. Há
muito tempo que não comia uma comidinha tão boa.
Tino: Então não havia de estar! Um
pica-no-chão cozido no pote da Tia Bernarda, com esta pinga a acompanhar, ainda
por cima quase tudo à pato!
Zé Bisca, (murmurando virado para o
público): Como um
pato caiu ele.
Manel Manco: E tu, Tino, ainda comias mais uma raçãozinha?
Tino: Por hoje já estou satisfeito. Senão, há mais na capoeira de
onde este veio!
Zé Bisca: Para a próxima já
sabemos onde o ir buscar! Não sei é se amanhã não vais ter azia!
Inácio, (notando que o Manel estava bem
bebido): Manel, vê
lá se não é vinho a mais
para ti?
Manel Manco: Já Salazar dizia que
beber vinho, é dar de comer a um milhão de portugueses.
Zé Bisca: Louvo a tua
preocupação. Mas não é justo que assumas sozinho a responsabilidade de matar a
fome a tanta gente. Nós também queremos contribuir para essa causa!
Manel Manco, (vendo o garrafão de gargalo
para baixo sem cair nenhuma pinga): Mas quem raio é que
bebeu tanto vinho?
Chico
Pombo: Eu só bebi uma malga,
ora pois.
Zé Bisca: Mas quantas vezes a esvaziaste, Chico?
Chico Pombo: Isso é que se calhar, às tantas, talvez, pois,
sei lá...
Manel Manco, (com a malga na mão):
Sempre que venho aqui,
fico tonto, mas não me
importo,
entro direito e saio
torto,
mas volto sempre até ti.
Inácio, (com a malga na mão):
Este líquido precioso,
servido com tanta arte,
sabe bem em toda a
parte,
perco-me sempre que o
encontro.
Zé Bisca, (com a malga na mão):
Uma caneca na mesa,
a mais bela decoração,
e eu com a malga na mão,
desfruto desta beleza.
Tia Bernarda: Bem canta Marta, depois de farta!
Manel Manco: Ó Tia Bernarda, o que caía bem agora era cada
nosso bagacinho p’ra digestão.
Inácio: Traga cinco calicezinhos e a dolorosa que são
deshoras.
Tia Bernarda: Há que tempo que são
deshoras, seus caras-de-caralho! Mas que conta vos vou eu fazer, se fostes vós
que trouxestes tudo? Eu só meti duas mãozinhas de arroz no pote e um raminho de
salsa em cada terrina.
Inácio: E teve esta trabalheira toda e ainda esta louça
para lavar.
Manel Manco: Além de estar a aturar estes malandros!
Tia Bernarda, (trazendo os cálices de
aguardente): Bem, isso p’ra ser um valor justo, trezentos escudos por
todos, ninguém fica mal.
Tino: Ora então, trezentos escudos a dividir por cinco, tocam-me
três Santos Antónios.
Chico Pombo: Ei, eu fui convidado!
Inácio: Claro que sim, Chico. Foi uma honra ter-te na
nossa mesa. Quanto a nós, deixamos cada nossa nota de cem escudos, que a Tia
Bernarda merece.
Tino, (enquanto conferia o seu dinheiro e o colocava na
mesa): Contas são contas. Tocam-me sessenta
escudos, é quanto vou desembolsar!
***
TERCEIRO ATO
Cena I
(Manhã
seguinte, um domingo - ainda março - perto da hora do almoço, na taberna estão
a Tia Bernarda, o Zé Bisca, o Manel Manco e o Inácio. Nisto chega o Tino.)
Zé Bisca: Bons olhos te vejam, Tino. Parece que hoje
foste tu quem acordou a vestir mal de cara.
Tino, (ameaçador): Elas cá se fazem, cá se pagam.
Zé Bisca: Não nos vais dizer que te caiu a pila por teres
partilhado uma comezaina com os amigos?
Manel Manco: Comezaina e bebezaina.
Inácio: Tino, cada um só tem o que merece!
Zé Bisca: E até devias agradecer, pois a tua mulher já
não vai reclamar mais que o galo come uma rasa de milho por semana!
Tino: Fiquem avisados que há mais marés que marinheiros!
Mas perdido por cem, perdido por
mil. (colocando uma nota em cima do balcão): Ó Tia Bernarda,
sirva aí uma rodada de Vinho do Porto e pague-se daqui.
(olharam
atónitos uns para os outros)
Tia Bernarda, (também atónita, enquanto
atende o pedido): Algum
santo caiu do altar!
Manel Manco: Então, Tino, já que estás refeito da tramoia,
conta-nos lá como é que a descobriste?
Tino: Mas não vos bastou a filhodaputice que me fizeram?
Manel
Manco: Vá lá, Tino, é só mais um bocadinho e depois acaba.
Tino: Então foi assim, seus bandidos.
Entrei pela calada e escapei
de ser recebido com honras de folião. Mas pela manhã é que a coisa aqueceu,
quando a mulher me acordou: (imitando a voz da mulher) ‘Olha a
missa, Tino. Se não levantas já essa pança, nem o sermão ouves. E logo tu, que
tantos sermões necessitas de ouvir.’
Inácio: Necessitas mesmo, Tino!
Tino: Ai eu é que necessito de ouvir
sermões, seu salteador de capoeiras e adegas!
Zé Bisca: E fumeiros!
Manel Manco: Sempre ouvi dizer que roubar para comer não é
pecado, Tino. Mas arruma lá esse episódio.
Tino: Aqui vai. Eu, ainda estremunhado,
perguntei-lhe: ‘Que horas são, mulher, que o sol já espreita?’ (imitando
a voz abespinhada da mulher) ‘Já espreita? Onde já anda o sol e
tu nessa pasmaceira a curar o vinho que engoliste acima da conta’… (retomando
a voz normal) Então desculpei-me: Ó mulher, se não despertei é porque o
galo não cantou tão alto como o costume. Estará rouco?
Zé Bisca: Já estava era no nosso bucho!
Tino: Pois estava, comilões. E ela, num tom
ainda menos meigo: (imitando a voz da mulher) ‘Se cantou alto ou
baixo, foi noutra capoeira. Aqui, só se tivesses escutado o da vizinha!’
Manel Manco: E tu já com a pulga atrás da orelha!
Tino: Foi a partir daí que tudo veio à tona: ‘Que
raio queres tu dizer com isso, mulher?’ Mas ela parecia que estava feita
convosco e ainda atiçou: (imitando a voz da mulher): ‘Nem
o ouviste cantar, nem um osso dele irás espichar, pois andou bicho no
galinheiro e digo-te já que não foi cão nem raposa.’
Manel Manco, (a apontar para o Zé Bisca e o
Inácio): Foram dois
ratos!
Tino: ‘Caramba, mulher, como sabes tu que não foi cão
nem raposa?’… perguntei e ela não parava de atiçar: (imitando a voz da
mulher) ‘Se fosse cão ou raposa, era com água que o empurravam
para o bucho. Mas os rapinas, além do galo, deram um desfalque de dois
garrafões na arrecadação, pois metade deles também bateram as asas.’
Inácio: Essa deu-te a volta ao miolo, confessa lá!
Tino: E a coisa não ficou por ali. Quando me
preparava para meter a cabeça no alguidar, espreitei pela porta da cozinha e reparei
que o fumeiro estava menos apinhado do que no dia anterior. Vendo-me assombrado
a olhar para lá, perguntou-me, como se a culpa não fosse dela: (imitando
a voz da mulher): ‘Que raio de bentas são essas? Não mandaste cá
o Chico Pombo com um recado para eu lhe entregar os dois maiores salpicões do
fumeiro e um bom naco do presunto? Até dei uma mancheia de nozes ao rapaz p’ra
lhe pagar o favor que te estava a fazer!’
Zé Bisca: Foi quando reconheceste as nozes e o pano que
embrulhava o presigo que tive medo de que o caldo se entornasse.
Tino, (em desabafo): Até o malandro do Chico me enganou!
Inácio: Tino, de tempero estava no ponto.
Zé Bisca: Umas vezes toca a uns, outras vezes toca a
outros! E a tradição é comprar o galo sem falar com o dono!
Manel Manco: E tradições são para se cumprir.
***
QUARTO
ATO
Cena I
Um
mês depois (abril)
Na
taberna estão:
A Tia
Bernarda dentro do balcão.
O
Baltazar e o Aristeu a jogar dominó.
O
Zé Bisca, o Manel Manco, o Tino e o Inácio a jogar à sueca.
Só falta o Chico Pombo
Inácio: Tia
Bernarda, encha a minha malguinha para molhar a garganta, que está seca por
culpa dessa poeira das obras da estrada.
Tino: Eu
até também bebia. Mas não é que me esqueci da carteira!
Inácio: Sirva
também uma malga ao Tino, pago eu. O unhas-de-fome prefere morrer entalado do
que gastar um pataco.
Tino:
Já te esqueceste que, ainda há dias, ofereci dois garrafões à malta.
Zé Bisca: E o
resto!
Manel Manco: Essa
ainda está aí atravessada?
Tino:
Atravessada está a obra da estrada que nos está a atrofiar de pó e de barulho!
Tia
Bernarda, (a servir as malgas):
Custou a arrancar, mas agora vai de vento em popa.
Inácio: Não
tarda, ir e vir à vila vai ser um tirinho.
Manel Manco: E
não vamos ter que ir atrás dos rebanhos a ouvir aquele chinfrim por esses
caminhos de terra batida.
Zé Bisca: E se
fosse só o chinfrim! O pior é que é sempre na
hora de regresso ao doce lar que toda aquela bicharada resolve aliviar a tripa.
Inácio: Se as caganitas fossem de ouro, o caminho
da encosta era um tesouro.
Zé Bisca: Ias
ver o Tino a apará-las todas!
Tino, (ofendido): Não é
o Tino que assalta capoeiras!
Zé Bisca: A
receita foi tua, Tino. Nós só nos enganámos na porta!
Tia
Bernarda, (servindo vinho ao
Inácio):
Esta pinga até parece que veio do céu.
Zé
Bisca, (com atrevimento): O que nos está a querer
confessar, Tia Bernarda? Do céu vem a água da chuva!
Tia Bernarda:
Mas este vinho veio das uvas das vides desta aldeia, meu maroto, pisadas pelos
vossos pés.
Zé
Bisca: Bem me pareceu que isto sabe aos pés do Tino!
Tino, (ofendido): Os pés do Tino estão mais limpos do que a tua
língua!
Inácio (mudando de
assunto): Está realmente aqui uma pinga de estalo. Mas
não bebam muito,
senão ficam a ver a terra a girar!
Zé
Bisca: A terra gira, quer bebas vinho, quer bebas
água.
Baltazar:
A terra gira? Gira como, Zé?
Zé
Bisca: A terra gira à volta do sol, ou não é,
s’Baltazar?
Baltazar:
Tu és dos que acreditam nessa treta?
Zé Bisca: Treta,
s’Baltazar?
Baltazar:
Algum de vós está a senti-la a girar?
Manel
Manco: Agora não, s'Baltazar. Mas há noites em que
saio daqui e vejo tudo às voltas!
Baltazar:
Bebe mais na Fonte do Monte do que aqui, que isso passa!
Aristeu: Ó
compadre, olhe que também eu sempre ouvi dizer que a terra é redonda e gira à
volta do sol.
Baltazar: Ai a terra é redonda, compadre? Até me pasmo
com vossemecê!
Inácio: Olhe que aprendi isso na escola, s’Baltazar.
Baltazar: Coitadas das crianças, que vão à escola para
lhes enfiarem essas histórias da carochinha na cabeça.
Aristeu: Ó compadre, se ensinam isso na escola, é porque
deve ser verdade. Até já ouvi dizer que no outro lado do mundo fica a China.
Baltazar: Ai fica a China?
Aristeu: Estou a vender ao preço que comprei.
Baltazar, (agarrando numa peça de fruta de
uma terrina em cima do balcão): Pois então, pense comigo. Se a terra fosse redonda, nós
estávamos aqui em cima, certo?
Aristeu, (movimenta a cabeça na vertical, a
concordar, enquanto os restantes ficam atentos ao que aí vem).
Baltazar: Se a China ficasse do outro lado, os chineses
moravam por baixo de nós, certo?
(Aristeu
volta a movimentar a cabeça a concordar)
Baltazar: Expliquem-me então como raio se seguram eles e
como podem viver de pernas para o ar?
Aristeu: Sei lá eu, compadre. Mas toda a vida ouvi dizer
que do outro lado do mundo fica a China.
Baltazar: Pois junte-se a quem lhe espetou essa trapaça e
cavem um buraco bem fundo no seu olival. Pás e picaretas, eu empresto que
chegue para essa empreitada. Quando chegarem ao outro lado, regressem que eu
pago p’ra ver se trazem de lá algum chinês!
Inácio: O s’Baltazar não vê que também a lua é redonda?
Baltazar:
Que eu saiba, não mora lá ninguém!
Manel Manco: Por falar na lua, ouvi no rádio hoje que já
vai fazer dez anos que o os astronautas foram lá?
Aristeu: Foram onde?
Manel Manco: À lua, s’Aristeu.
Aristeu: Quem é que foi à lua!?
Baltazar: Os americanos, compadre. Recordo-me bem
dessa noite. Esta sala estava cheia de gente a olhar para aquela televisão.
Aristeu: Vossemecê não vê que isso é que foi mesmo uma
trapaça das grossas que os americanos nos pregaram?
(todos,
em silêncio, com ar interrogativo)
Aristeu: Olhe que se nessa noite, em vez de ter vindo
aqui beber a sua malguinha e olhar para a televisão, tivesse feito como eu, o
compadre sabia que isto é uma aldrabice do tamanho da lage de Pinto.
Zé Bisca: Será que o s’Aristeu nos pode dizer o que fez
para ter tanta certeza que isto é uma aldrabice?
Aristeu: Pois saibam que, durante toda essa santa noite
em que os americanos anunciaram aquele entrudo, eu não tirei os olhos da lua e
digo-vos que não vi nenhum foguetão a lá chegar.
(todos,
em silêncio, com ar espantado)
Inácio: Acha que podia ver daqui o foguetão a chegar à
lua, s’Aristeu?
Aristeu: Então não o ia ver? Por culpa de uma vida
inteira a alombar cestas de azeitona com a chuva a cair-me nas costas, eu posso
estar fraco dos ossos. Mas as minhas vistinhas, graças a Santa Luzia, a quem me
apeguei para que tomasse conta delas, ainda estão quase tão frescas como
naquela desfolhada em que a minha Maria encontrou uma espiga milho rei e lhe
dei um beijo, que a deixou mais vermelha do que os grãos que tinha nas mãos.
Cena II
Chico
Pombo, (entra ofegante, tira o chapéu e pousa-o no
balcão): Batardes,
povo e pova de Arribas do Monte.
Todos:
Boa tarde Chico.
Chico Pombo:
Tenho novidades, mas esta sede...
Inácio: Ó Tia Bernarda, sirva meio quartilho ao Chico e
ponha na minha conta.
Chico Pombo:
Malga cheiinha, Tia Bernarda. Vossemecê já sabe como é. Uma malga não é uma
malga menos um bocadinho!
Tia Bernarda, (enquanto
lhe servia o vinho): Solta lá as novidades,
Chico.
Chico Pombo, (depois de
molhar os lábios na malga sem a levantar do balcão, a olhar para as
pataniscas): Soltar eu até soltava! Mas a voz saía-me
melhor com uma patanisca daquelas no bucho!
Inácio:
Sirva-lhe também duas pataniscas, não vá o tinto cair-lhe mal.
Chico Pombo:
Obrigado senhor Inácio.
Tia Bernarda, (enquanto o
serve): Bom
proveito, Chico. Mas o que se passa afinal.
Chico Pombo, (a mastigar a
merenda): As obras da estrada estão paradas.
Todos:
Paradas!?
Chico
Pombo: Paradas, ora pois!
Tia
Bernarda: Paradas porque carga d'água?
Chico Pombo:
Quando as escavações se aproximaram da fonte,
apareceram umas pedras.
Tino:
E pararam a construção da estrada por causa duns calhaus?
Chico Pombo: Não
são calhaus como vossemecê está p'raí a pensar, senhor
Tino.
Tino: Há
assim tantos tipos de calhaus em Arribas do Monte?
Chico Pombo, (enervado): Já
disse que não são calhaus, caralho. São pedras importantes.
Inácio:
Pedras importantes?
Chico Pombo: Não
é coisa que eu saiba explicar como manda a lei. Mas
vê-se bem que não foi a natureza que as talhou assim.
Tia Bernarda: Para
pararem a obra, deve ser coisa séria.
Manel Manco:
Vossemecês vão ver que foi um tesouro antigo que ali encontraram.
Tia Bernarda: Valha-nos Santa Engrácia!
Manel Manco: Será
que a Tia Bernarda nunca ouviu dizer que, na Fonte do Monte, está escondida uma
moura encantada há mais de mil anos? E a quem a libertar do feitiço, ela
oferece um tesouro tão grande que são necessários vinte carros de bois para o
carregarem!
Tia Bernarda: Oh valha-nos Santa Engrácia!
Manel Manco: Vão
vossemecês todos ver que encontraram o tesouro e agora é que a moura se quilhou
de vez!
Tino: Cá
para mim, foi mas é minério que lá encontraram.
Tia Bernarda, (novamente
incrédula): Valha-nos Santa Engrácia! Agora
temos minério em Arribas do Monte?
Tino: Não
me admirava nada! E se for coisa grande, não tardam aí os americanos e para nós
não vai sobrar nem uma amostra.
Manel
Manco: Se os russos não chegarem cá primeiro.
Tino: Se chegam ambos na mesma hora é que vai ser um
Deus-nos-acuda.
Chico Pombo: Lá
estão vossemecês a desvairar. Eu estive lá e vi, com estes dois que a terra há
de comer, que só encontraram pedras com gravuras e letras escritas numa língua
que ninguém sabe ler.
Zé Bisca: Pedras
com letras? Vão ver que por baixo da fonte está a sepultura dum santo. Por isso é que aquela água faz tantos
milagres!
Tino: Mas qual sepultura?
Cá para mim, encontraram ali as pedras onde Moisés escreveu os Dez Mandamentos
da Lei de Deus.
Tia Bernarda:
Valha-nos Santa Engrácia!
Manel Manco: Então
vão vossemecês todos ver que estes homens descobriram que a Fonte do Monte é,
afinal, a fonte de Jacob, onde a Samaritana matou a sede a nosso Senhor Jesus.
Tia Bernarda: Ora
então Moisés e Nosso Senhor Jesus Cristo andaram por Arribas do Monte?
Manel Manco: Será
que a Tia Bernarda nunca subiu ao alto da Laje de Pinto, para ver as pegadas da
burrinha que transportou a Sagrada Família quando ia a fugir do rei Herodes?
Tia Bernarda, (cada vez
mais pasmada): Valha-nos Santa Engrácia!
Zé Bisca, (em surdina para que a sua voz não chegasse até ao lado de dentro do
balcão): A Tia Bernarda é mulher de pouca fé. Cá para nós, destas coisas das Sagradas
Escrituras, só acredita no milagre das Bodas de Caná da Galileia. Acredita
tanto que até já o aprendeu a fazer!
(erguem-se alguns risos, que deixam
a taberneira incomodada por desconfiar ser ela própria o alvo da piada)
Baltazar: Bem,
rapaziada, fiquem com Deus. Para nós está na hora de abalar.
Aristeu: Falta
pagar alguma malga da nossa mesa, dona Bernarda?
Tia Bernarda: Está
tudo pago, meus senhores. Deus os guie na ida e os traga cá durante muitos
anos.
Aristeu: Pela
vossa saúde, rapazes, não bebam tudo hoje!
Zé Bisca: Não
se preocupem. Haja ou não haja uvas, o vinho nunca acabou em Arribas do Monte!
Todos: Até
amanhã se Deus quiser.
(Baltazar e Aristeu, colocam as
boinas na cabeça, preparando-se para saírem. Se um dos atores tiver a cabeça
maior que a do outro, trocam-nas acidentalmente, ficando uma muita larga e
outra muito pequena, olham um para o outro antes de voltarem a trocar, podendo
originar alguma graça)
Cena III
Tino: A ignorância dos velhotes dá
para rir.
Tia Bernarda, (indignada): Como
é que é isso, Tino?
Tino: A Tia
Bernarda não os ouviu, antes do Chico trazer as novidades?
Tia
Bernarda: Ouvi
o quê?
Tino,
(em tom de troça): Como
se não lhes bastasse serem analfabetos, o s’Baltazar não acredita que a terra é
redonda e o s’Aristeu acha que conseguia ver daqui os astronautas na lua!
Tia Bernarda, (saindo decidida
do balcão, virando-se para o Tino): Houve bem,
Tino. Sobre ignorância, já hoje escutei aqui matéria que dava para encher
muitos cadernos. Por isso, antes de chamares ignorante a alguém, coloca num
prato da balança o quanto ele tem para te ensinar, e no outro o quanto tem a
aprender contigo!
Tino: Mas...
Tia Bernarda (interrompendo-o): Mas o caralho,
Tino! (uma breve pausa) Com estes dois anciãos ainda tens muito
que aprender! Eles nasceram numa época muito dura, mas, apesar de
nunca terem entrado numa sala de aula, tornaram-se grandes sábios em matérias
que nem eu, nem tu, algum dia iremos entender.
(uma
pequena pausa, ninguém piava e o Tino fica particularmente incomodado)
Tia Bernarda: Algum de vós sabe de quem são as mãos que
talharam as pedras da capela de São Francisco, que as assentaram, que colaram
os azulejos no interior e revestiram o teto com aquelas lindas molduras?
Manel Manco, (lembrando-se
de uma conversa dias antes): Foi
o s’Baltazar.
Tia Bernarda: Exatamente, o s’Baltazar Pedreiro. E
essas mãos não são apenas fortes. São mãos de um poeta, senão, o resultado
nunca seria aquela linda capela.
Tino: Mas...
Tia Bernarda: Nem mas, nem meio mas, caralho. Eu ainda não
acabei!
(um breve silêncio)
Tia Bernarda: E sabias que o s’Aristeu era mais novo do que
o meu neto quando chegou a esta aldeia, descalço e só com a roupa esfarrapada
que tinha no corpo, para trabalhar no lagar? E, do pouco que ganhava, ainda
conseguiu amealhar alguns tostões e começou a negociar azeitonas de pequenos
produtores que, depois de as juntar, vendia-as ao patrão, que gastava mais do
que o lucro no jogo e em saias… Coisas que nunca deram bom resultado!
(um
breve silêncio)
Tia Bernarda: É verdade que não sabe ler nem escrever, mas
ninguém conhece a arte do azeite como ele. Entende os sinais da terra, do
vento, da chuva e do sol. E conhece a lua melhor do que os astronautas em quem
não acredita e sabe sempre qual a certa para plantar uma oliveira, para a
varejar ou para espremer as azeitonas.
(um
breve silêncio)
Tia Bernarda: E do nada com que chegou a esta aldeia, acabou
por ficar proprietário do lagar. E neste longo percurso, nunca lhe foi apontada
a mais pequena mancha. E esse é o seu maior tesouro, porque mais valioso do que
o que um homem sabe, ou do que um homem tem, é o que um homem é.
***
QUINTO
ATO
Cena I
Um
mês depois (maio)
Na
taberna estão:
A Tia
Bernarda dentro do balcão.
O
Baltazar e o Aristeu a jogar dominó.
O
Zé Bisca, o Manel Manco, o Tino e o Inácio a jogar à sueca.
Só
falta o Chico Pombo
Inácio:
Alguém teria conhecimento de que a Fonte do Monte era mais do
que aquele arco embutido no muro?
Aristeu:
Se nem dois velhotes como nós sabíamos o que ali estava enterrado, como podia
alguém saber?
Inácio:
Depois de toda aquela terra removida, está à vista de todos
um monumento digno de ser apreciado.
Manel
Manco: Quem a viu e quem a vê!
Tino: Que
raio quererão dizer aquelas letras esculpidas na frente da pia?
Tia Bernarda: Como
é que é isso, Tino?
Tino: Aquilo
está escrito numa língua estranha!
Tia Bernarda:
Quer-me parecer que há mais gente
que não sabe ler!
Tino,
(embaraçado): Bem,
uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa!
Tia Bernarda: Pois
é, Tino. O que cada um sabe é um grão de areia, comparado com o deserto
que ignora!
Tino: Mas será que a Tia Bernarda
sabe dizer o que está lá escrito?
Tia Bernarda:
Aquilo é latim e significa: 'quem beber da água que Eu lhe der, nunca mais terá
sede'.
Inácio: Há
quantos anos estariam aquelas pedras ali enterradas?
Manel
Manco: Já
lá devem estar desde o tempo do Dom Corno XIV.
Tia
Bernarda: E
toda a gente a pensar que ali não havia nada mais do que água a cair na pia
rente ao chão.
Zé
Bisca: Para lá bebermos ou enchermos
um cântaro, tinha que ser de cu arrebitado. Agora cabemos de pé dentro do arco
e a pia dá-nos pela cintura.
Aristeu:
E tanta gente nasceu e morreu
nesta aldeia sem lhe passar pela cabeça a existência daquela escadaria.
Baltazar: Nem daqueles pináculos sobre
os capiteis.
Aristeu:
Estão agora explicados os rumores, sobre um deslizamento de terras no monte do
ermitão, que cobriu de lama aquela zona.
Baltazar: Já o
meu avô contava que se contava que houve um inverno em que choveu desde as
vindimas até ao Domingo de Ramos, em que nem verão de São Martinho, nem sol de Carnaval,
tiveram licença para entrar. E foi durante uma dessas tempestades que houve
uma derrocada no monte do ermitão que cobriu aquela zona de lama.
Manel Manco: Essa
história não é nova, mas eu pensava que era só para meter medo à criançada para
não brincar no monte, por causa do perigo das minas de água que lá existem.
Inácio: Agora
começa a fazer sentido.
Baltazar: E o
que também faz sentido, é a letra daquelas quadras que entoávamos durante
desfolhadas e vindimas.
Aristeu: E
também as cantávamos nesta taberna, ao som da desgarrada e da concertina...
Baltazar: ...
e da malga de mão em mão!
Inácio, (surpreendido): Realmente essas quadras fazem menção às escadas da fonte. Como é que nunca ninguém desconfiou?
Zé Bisca: Ora aqui vão elas:
Nas
escadas da fonte, vi uma linda rapariga,
com
as mãos na cintura e a bilha na cabeça,
tinha
voz melodiosa, entoava uma cantiga,
olhei
para ela e disse: “dessa água me ofereça”.
Inácio:
“Empreste-me
a bilha para molhar a garganta,
dê-me
de beber, antes que um mal me aconteça,
olhe
que a sede que trago comigo é tanta,
mate-a
logo, antes que neste pátio eu pereça”.
Manel Manco:
A
linda rapariga, a sorrir, falou-me assim:
“Beba,
beba, está bem fresca e cristalina”.
Aproximei-me,
senti um cheiro a jasmim,
toquei
na bilha e vi, que era nova e louça fina.
Tino:
Com
as nossas sedes de água saciadas,
olhou-me
em silêncio, junto da Fonte do Monte,
peguei
na sua mão e sentámo-nos nas escadas,
o que
veio a seguir é melhor que eu nem conte.
Aristeu:
O sol
avermelhava naquela tarde de calor,
deitámo-nos
no pátio da fonte a descansar,
não
era sede de água, era sede de amor,
e era
tanta a sede que ali havia para matar.
Baltazar:
Água
assim tão fresca, nunca antes eu bebi,
como
naquela tarde, junto da fonte, deitado,
que
maravilhosa sensação que eu senti,
aquela
linda e nova bilha deixou-me saciado.
Tia Bernarda:
Mais
à tardinha, quando ela se despedia,
disse-me
preocupada: “o que foste tu fazer?
Podes
beber nesta fonte noite e dia,
água
fresca como esta, nunca mais irás beber”.
“Nesta
bilha, nunca em toda a minha vida,
alguém
tinha bebido, estava nova por estrear,
agora
está em cacos, deixaste-a toda partida,
neste
pobre estado, já nem dá p'ra consertar”.
Zé bisca:
Quando
os pátios e as escadas ela descia,
fiquei
junto da fonte, com tamanha sensação,
que,
com saudade, para sempre recordaria,
aquela
tarde de amor, tão ardente de verão.
Inácio:
Pelo
outono, procurou-me a rapariga,
que,
naquela tarde, a minha sede saciou,
assustada
disse-me: “olha a minha barriga,
bebeste
na minha bilha e ela agora inchou”.
Manel Manco:
Respondi-lhe:
“que desgraça, tão má sorte,
a
minha vida vai ficar toda desconsertada,
pois
estou noivo de donzela com grande dote,
e a
data do casamento, já está anunciada”.
Tino:
“Não
posso ser o pai da criança que vai nascer,
por
isso dirás ao povo de Arribas do Monte,
que
água milagrosa, tantas vezes foste beber,
e o
que trazes no ventre é um milagre da fonte”.
Tia Bernarda:
A
rapariga deu-me uma grande bofetada,
indignada
gritou: “não será como te convém,
olha
que eu não sou a Virgem Imaculada,
e
Arribas do Monte, não é a cidade de Belém”.
“Não
foste tu rogado naquela tarde de sol quente,
agora
não te esgueires ao dever, seu ordinário,
pois
no meu ventre, cresce uma criança inocente,
que é
filha de gente, não é filha dum fontanário”.
Cena
II
(entra o Chico Pombo, ofegante)
Chico
Pombo:
Batardes,
povo e pova de Arribas do Monte.
Todos:
Boa tarde, Chico
Chico Pombo:
Tenho mais novidades sobre a estrada, mas esta sede...
Inácio: Tia Bernarda, mate a sede ao Chico, pago eu.
Chico Pombo: Já
sabe como é, Tia Bernarda.
Tia Bernarda: Como
é que é o quê, seu cara-de-caralho?
Chico Pombo: A
malga é cheinha, ora pois!
Tia Bernarda, (enquanto enchia a malga com a caneca): Chico, esta pipa não é a Fonte do Monte. Mas entorna
lá essas novas.
Chico Pombo: As
novas hoje é que não há novidades!
Tia Bernarda: Como é que é isso?!
Chico Pombo:
Nenhumas, ora pois.
Tia Bernarda: Explica lá isso melhor, porque tu agora pareces
um jornal sem letras!
Chico Pombo: As
obras da estrada vão continuar paradas.
Tino: Mas
então agora, que já estávamos a contar com a estrada, aquilo nem p’ra trás nem
p’rá frente?
Chico Pombo: Eles
não a podem fazer sem destruirem a Fonte do Monte.
Baltazar: E a
fonte é que não podem mesmo destruir.
Aristeu: Deus
nos livre duma desgraça dessas.
Tia Bernarda: Sobretudo
agora, que está tão bonita.
Tino: Não
vejo qual é o problema em destruirem a fonte. Ela pode ser construida noutro
local da aldeia. E a água pode ser encanada até lá.
Inácio: Isso
querias tu, que vais herdar duas bouças na berma da futura estrada e só te
interessa a valorização delas.
Aristeu:
E
aquela água não pode ser encanada, não senhor.
Tino:
Porque
carga d'água não pode a água ser encanada, s'Aristeu?
Aristeu:
Aquela água corre por um aqueduto de pedra, construído pelos antigos, que vem
desde a mina até à bica. Se alguém mexer nisso, ela deixa de ser milagrosa.
Tino:
Então
a estrada que passe por onde ia passar, e destruam só as escadas. Até há bem
pouco tempo vivíamos bem sem elas.
Tia Bernarda: Homessa
agora! A estrada também nunca existiu e ninguém morreu pela falta dela.
Aristeu: A fonte tem de continuar como
está. Nem que tenhamos que a guardar noite e dia. Digo-vos eu que aquela água
faz milagres.
Manel Manco: Eu
próprio devo muito à Fonte do Monte. Ninguém queira penar o que eu penei, por
causa das hemorróidas que trouxe da Guiné, terra lá longe onde comi o pão que o
diabo amassou, temperado com umas ervas que os pretos preparavam. Aquilo
sabia-me pela vida, mas no dia seguinte até deitava lume pelo cu.
Tia
Bernarda: Graças
a Deus que ao menos regressaste, ao contrário de tantos que tiveram pior sorte.
Manel Manco: Mas
olhe que não regressei igual ao que era quando para lá me mandaram.
Tia
Bernarda: Ninguém
que regressa duma guerra é o mesmo que partiu para ela.
Manel Manco: Mas
foi a comer aquela pólvora que arranjei este trinta-e-um e não havia dieta,
xarope nem chá que me livrasse de tamanho padecimento.
Tino: E
onde foste tu curar a maleita?
Manel Manco: À
Fonte do Monte, onde é que havia de ser? Durante o frio de um mês de março, num
ano em que a geada tardou tanto que pelo São José os campos ainda acordavam
como noivas, eu levantava-me pela madrugada e lavava na pia da fonte aquelas
partes que bem sabeis.
Tino,
(enojado): Ali,
onde tantas vezes eu bebi?
Manel Manco: Ali
mesmo! E vos digo que ainda no domingo passado houve jantarada rija na casa do
meu sogro, que é casa farta, e também desta vez não faltaram rojões, papas
sarrabulho, salpicão, presunto e por aí adiante.
Zé Bisca, (a atiçar o
Tino): O
presunto tinha cura de Montalegre?
Tino, (zangado): Isso
ainda dura?
Manel Manco: Depois
veio a doçaria, sem falar da pomada que ele engarrafa, que até salta para os
olhos. Olhem que não fiz cerimónias e as hemorróidas não se voltaram a
arreliar.
Tino: E as
minhas cólicas renais, que só Deus e eu sabemos a agonia que padeci. Quando
parecia que a coisa tinha ficado por ali, logo outra pedra nascia. Quando a
mijava, aliviava-me a tormenta por uns tempos, mas deixava-me a gaita num santo
cristo. Foram tantas as pedras que mijei que eu até estava a juntá-las para
fazer um colar para enfeitar o pescoço da minha Amélia.
(Todos, em silêncio e incrédulos)
Tia
Bernarda: Valha-nos
Santa Engrácia!
Tino: E a
cura ali tão perto, de graça e sem dor, pois abandonei a saca de porcarias da
botica, onde deixava couro e cabelo, e, todos os dias em jejum, bebia uns bons
goles na Fonte do Monte. Remédio santo, daquele martírio que padeci, já só me
afligem as lembranças.
Zé Bisca: E não
sabeis o que se passou com o touro de cobrição do Silvério Feitor, que ninguém
soube explicar que raio de esquisitice lhe deu?
Tino: Passa-se
alguma coisa com o animal?
Zé Bisca: Não
se passa, porque já lhe passou. Mas pelo varejar da azeitona, mal surgia a lua
cheia, eu levava lá uma fêmea e a coisa pegava enquanto limpávamos uma travessa
com uma punheta de bacalhau acompanhada duma caneca de vinho. Aquilo era um
toca a aviar, a toura vinha para casa no mesmo dia e rara era uma feira dos
Vinte-e-Cinco em que eu não cangava uma parelha de novilhos bem gordos para lá
vender.
Inácio:
E
onde nos levas com essa história?
Zé Bisca: A
história é que, há uns tempos, a gente levava-lhe uma toura e ela podia passar
uma semana inteira a desviar a cauda que ele não se decidia a ir lá cheirar. O
Silvério até agarrava uma molha de barbas de milho, esfregava-a naquelas partes
húmidas da fêmea e depois no focinho do bicho a ver se ele se fazia macho, mas
não adiantava nada. Era só comer e dormir.
Baltazar,
(a brincar e a lamentar-se): P'ra
lá ides, rapazes.
Aristeu,
(a brincar e a lamentar-se): Chega
uma altura que é uma tristeza!
Zé Bisca: Ó
avozinhos, vossemecês têm é que fazer como o touro do Silvério! A coisa com ele
também não tinha jeito de pegar, de maneiras que já se desconfiava que ele
tinha virado para o outro lado.
Tino:
E
como raio voltou o bicho a ficar macho?
Zé Bisca: Como
raio havia de ser! O Silvério levou-o à Fonte do Monte, lavou-lhe bem aquelas
ferramentas avariadas e, em pouco tempo, ficou mais assanhado do que um noivo
em lua-de-mel.
Tino:
Lavou as ferramentas do touro ali, onde tantas vezes bebi?
Zé Bisca: Ali
mesmo. E soou-me que, na semana passada, se não fosse o junco do Marcolino
Moleiro a afastá-lo, nem a mula com
os sacos de farinha às costas ia escapar aos desejos do animal!
Inácio,
(virado para a mesa de dominó): Já
sei quem é que amanhã vai lavar as ferramentas na Fonte do Monte!
Baltazar
(entrando na brincadeira): A
água da Fonte do Monte cura muitas doenças, rapazes. Mas nunca ouvi dizer que
ressuscitasse um morto!
Tino: Sabem
quem era tal e qual como as vacas que iam ao touro do Silvério?
(Todos, em silêncio, percebendo que ia ser o
próprio Tino a dar a resposta)
Tino: Era
a minha prima Georgina!
(Todos com
ar comprometido por causa da mulher em causa)
Tia
Bernarda:
Valha-nos Santa Engrácia!
Tino: Não
havia jeito da mulher ficar prenha, de maneiras que o casal quase perdia a
esperança em deixar herdeiros. Mas ela também não é de desistir.
Zé Bisca, (provocador): Não
é, não senhor! A Georgina sempre foi uma rapariga muito decidida. Não é assim,
Inácio?
(o Inácio embaraça-se, pois corre a fama
de andar em encontros com a Georgina)
Tino: A
mulher apegou-se à Fonte do Monte, lavou a boca do corpo naquela água...
Todos:
Lavou a boca do corpo ali, onde tantas vezes nós bebêmos?
Tino: Ali
mesmo. E vejam só: um rapagão quase a fazer a primeira comunhão e tem andado
para lá com uns enjoos, que até já se desconfia que vem outro a caminho.
(após esta intervenção libertaram-se
alguns gracejos, pois todos sabiam que nem o rapagão que andava na doutrina,
nem os enjoos de agora, eram fruto dos milagres da fonte)
Zé Bisca, (em tom despudorado): Ó
Tino, olha que a receita do touro do
Silvério na ferramenta do teu primo, era capaz de ter dado o mesmo resultado.
Manel Manco: E já
a Georgina não teria necessidade de ser como as vacas que lá vão para ele as
cobrir!
(o Tino, com
cara de lerdo, ri sem perceber o que se está a passar. Já o Inácio fica ainda mais embaraçado quando
o Zé Bisca volta a atiçar)
Zé Bisca: O rapagão da
Georgina, em vez de ser parecido com a Fonte do Monte, tem umas orelhas iguais
às do Inácio!
Tia
Bernarda: Valha-nos Santa Engrácia!
***
SEXTO
ATO
Cena
I
Um
mês depois (junho)
Na
taberna estão:
A Tia
Bernarda dentro do balcão.
O
Baltazar e o Aristeu a jogar dominó.
O
Zé Bisca, o Manel Manco, o Tino e o Inácio a jogar à sueca.
Só
falta o Chico Pombo
Tia
Bernarda: O
raio da estrada nem ata nem desata.
Tino: A
culpa é dos calhaus que andaram p'raí a desenterrar.
Tia Bernarda: Mas
quais calhaus? Este
achado é a prova de que pode estar muita beleza escondida por trás das coisas
mais simples.
Inácio: O
que incomoda o Tino é não ver as bouças que vai herdar a ficarem na berma da
estrada.
Tino:
Quero
lá saber das bouças. Mas se não terminarem o que começaram, acabem ao menos com
a lamice quando chove e com a poeirada quando não chove.
Manel
Manco: É
verdade que ainda não temos a estrada...
Tino,
(interrompe o Manel Manco): Pelo
andar da carruagem, duvido se algum dia a vamos ter.
Manel
Manco: ...mas
graças a esta descoberta, a nossa aldeia tem sido visitada por gente que nem
lhes passava pela cabeça que Arribas do Monte existia.
Cena
II
(entra, ofegante, o Chico Pombo)
Chico
Pombo:
Batardes, povo e pova de Arribas do Monte.
Todos: Boa
tarde, Chico.
Chico
Pombo:
Trago boas notícias, mas esta sede... ai, esta sede...
Inácio: Tia
Bernarda, o costume p'ró Chico.
Chico
Pombo:
Já
sabe como é, Tia Bernarda.
Tia
Bernarda, (enquanto lhe servia o vinho): Já
aprendi, cara-de-caralho. Cheinha até esbordar.
Manel Manco: Solta
lá as novidades, Chico?
Chico
Pombo, (após o primeiro gole): Eu
quero contar, senhor Manel. Mas nem tenho forças.
Tia
Bernarda (enquanto abria um pão e lhe colocava uma ração de figado de
porco): Toma
lá um bife de fígado, pobre diabo, que o teu já não deve estar grande coisa!
Hoje é por minha conta.
Chico Pombo, (enquanto mastigava): Afinal, esses bardamerdas
nem um pintelho da Fonte do Monte vão arrancar!
Tia
Bernarda: Sempre
não a vão destruir?
Chico
Pombo, (com cara de bravo): Ai do
filho-da-puta que o tentasse sequer! Atão eu não os tinha avisado um
aviso?
Tia
Bernarda: Tinhas
o quê?
Chico
Pombo:
Tinha-os avisado que podiam construir a estrada, mas ai deles se fizessem mal à
Fonte do Monte, que iam ver o bom e o bonito. Depois que se fossem queixar à
puta que os há de parir!
Tino: E a
estrada vai ficar assim?
Chico
Pombo: As
obras da estrada vão arrancar outra vez.
Tia
Bernarda:
Vamos ficar com as duas coisas?
Chico
Pombo: Ora
pois!
Inácio: Como
raio vão eles fazer isso?
Chico
Pombo: A
estrada vai desviar por um desvio.
Tino, (preocupado que a estrada já não passe junto das suas bouças): Um
desvio? Um desvio por onde?
Chico
Pombo: Em
vez de passar junto da Fonte do Monte, vai à volta do monte do ermitão.
Tino: À volta do monte? Mas
assim vai ficar mais longa. E mais cara!
Inácio: Mais
cara para ti. Parece que as bouças do teu sogro vão continuar a servir apenas
para nascer lá mato p’ró gado fazer estrume!
Tino, (lamentando-se): E
tudo por culpa duns calhaus!
Tia Bernarda: Mas
quais calhaus? A Fonte do Monte é o ex-líbris de Arribas do Monte. E se já
agora aparece aí gente de cascos-de-rolha para a ver, quando a estrada ficar
pronta é que isto vai parecer uma romaria.
Zé
Bisca: Até
excursões vamos ver em Arribas do Monte.
Manel Manco: Mas
só nós, povo desta aldeia, temos a regalia de lá beber todos os dias.
Chico Pombo:
Esses bardamerdas querem lá beber água da Fonte do Monte!
Baltazar
e Aristeu, (estupefactos e atentos à conversa).
Tia
Bernarda: Então
que vêm eles cá fazer?
Chico Pombo: Eles
vêm ver a fonte.
Tia
Bernarda: E não
bebem água?
Chico Pombo: Nem
uma gota. Nem lhe tocam sequer!
Manel
Manco: Nem
molham as partes doentes na água milagrosa?
Chico Pombo: Será
que vossemecês estão todos mouquinhos? Quantas vezes já disse que esses
cagalhões com pernas só vêm olhar para a fonte?
Tia
Bernarda: Olhar
para a fonte! Não há dúvidas que ela, sobretudo agora, merece ser
contemplada. Mas é estranho que, pelo menos com este calor, não bebam a sua
água?
Chico
Pombo, (a troçar os turistas): Eles
bebem água que trazem em garrafinhas!
Tia
Bernarda: Vêm
visitar a fonte e trazem água com eles?
Isso
é a mesma coisa que ir à Madeira e levar bananas!
Zé
Bisca: Ou
ir ao deserto e levar areia!
Chico
Pombo: Ora
pois. É como ir ao deserto e levar bananas!
Tia
Bernarda, (suspirando): Valha-nos
Santa Engrácia!
Chico
Pombo: Na
água da Fonte do Monte é que não molham a focinheira. Ficam só ali, pasmados,
como um boi a olhar para um palácio.
Aristeu:
Pasmados
com quê? Uma fonte admira-se pela água que brota, ou não é?
Chico Pombo: Eles
chegam com aquelas caras de meter nojo, tiram fotografias e depois lá vão
armados em gente fina p'ró quinto-caralho-mais-velho de onde vieram.
Baltazar: Que
raio de gente estranha! Afinal de contas, a verdadeira beleza da Fonte do Monte
nunca esteve escondida.
Manel Manco: A
beleza da Fonte do Monte nunca esteve escondida? Será que o s’Baltazar já não
se recorda que aquilo mais parecia a toca duma raposa? Pois agora temos a
escadaria, os pátios, os muros, aqueles picos de pedra com molduras...
Baltazar: Mas
nada disso é mais belo e rico do que a sua água cristalina e milagrosa. É pela
água que brota que a Fonte do Monte tem tanto valor.
Tia
Bernarda, (estranhando): No
entanto, até estes dias, ninguém de fora da nossa aldeia lhe deu importância. E
vem agora esta gente lá das bandas onde Judas perdeu as botas para a verem e
não provam o melhor que ela tem!
Chico
Pombo, (com o chapéu no peito a olhar para as alturas):
Tristes tempos em que vivemos. Dá-se mais valor a uma fonte pela beleza que
ostenta, do que pela água que ela brota!
FIM